sexta-feira, 12 de março de 2010
Miguel Delibes (1920 - 2010)
quarta-feira, 3 de março de 2010
O Menino no Espelho
PRÓLOGO
O MENINO E O HOMEM
Quando chovia, no meu tempo de menino, a casa virava um festival de goteiras. Eram pingos do teto ensopando o soalho de todas as salas e quartos. Seguia-se um corre-corre dos diabos, todo mundo levando e trazendo baldes, bacias, panela, penicos e o que mais houvesse para aparar a água que caía e para que vazamentos não se transformassem numa inundação. Os mais velhos ficavam aborrecidos, eu não entendia a razão, aquilo era uma distracção das mais excitantes.
E me divertia a valer quando uma nova goteira aparecia, o pessoal correndo para lá e para cá, e esvaziando as vasilhas que transbordavam. Os diferentes ruídos das gotas d´água retinindo no vasilhame, acompanhados do som oco dos passos em atropelo nas tábuas largas do chão, formavam uma alegre melodia, ás vezes enriquecida pelas sonoras pancadas do relógio de parede dando horas.
Passado o temporal, meu pai subia ao forro da casa pelo alçapão, o mesmo que usávamos como entrada para a reunião da nossa sociedade secreta. Depois de examinar o telhado, descia, aborrecido. Não conseguia descobrir sequer uma telha quebrada, por onde pudesse penetrar tanta água da chuva, como invariavelmente acontecia. Um mistério a mais, naquela casa cheia de mistérios.
O maior, porém, ainda estava por se manifestar.
Obrigações de Caixote
Foram, dirigiram-se á tal casa. Em manada, ngo-ngo-ngo, bateram aporta. O residente confirmou, tinha dado o9s livros ao pedinte. Explicava-se em termos, quando, de repente, proclamou um pranto:
─ Não me tragam os livros de volta, por amor de Deus!
Dava pena: o homem, ainda de pijama, molhando as flanelas, os visitantes lhe consolaram, absurdo personagem que ansiava o desaparecimento de seus bens. Não declarava ele, vocês é que não entendem. Enchi estantes e estantes com tais literaturas. Nunca li quase nenhum. Agora me quis livrar deles. Mandei 15 caixotes para as tabacarias. Todos vieram de volta, os tabanqueiros disseram que o produto não tinha já nenhuma venda. A propósito, nenhum dos excelentíssimos está interessado em levar alguns livrinhos? É de graça, um caixote sem mais obrigações. Ninguém quer? Então, senhores, porque se vão embora, assim com essa pressa? É só um caixotinho, só unzinho …
Capitães de Areia
AS AVENTURAS SINISTRAS DOS «CAPITÃES DA AREIA» - A CIDADE INFESTADA POR CRIANÇAS QUE VIVEM DO FURTO – URGE UMA PROVIDÊNCIA DO JUIZ DE MENORES E DO CHEFE DE POLÍCIA – ONTEM HOUVE MAIS UM ASSALTO
Já por várias vezes o nosso jornal, que é sem dúvida o órgão das mais legítimas aspirações da população baiana, tem trazido notícias sobre a actividade criminosa dos «Capitães da Areia», nome pelo qual é conhecido o grupo de meninos assaltantes e ladrões que infestam a nossa urbe. Essas crianças que tão cedo se dedicaram à tenebrosa carreira do crime não tem moradia certa ou pelo menos a sua moradia ainda não foi localizada. Como também ainda não foi localizado o local onde escondem o produto dos seus assaltos, que se tornam diários, fazendo jus a uma imediata providência do Juiz de Menores e do dr. Chefe de Polícia.
Esse bando que vive da rapina se compõe, pelo que se sabe, de um número superior a 100 crianças das mais diversas idades, indo desde os 8 aos 16 anos. Crianças que, naturalmente devido ao desprezo dado á sua educação por pais pouco servidos de sentimentos cristãos, se entregaram no verdor dos anos a uma vida criminosa. São chamados de «Capitães da Areia» porque o cais é o seu quartel-general. E têm por comandante um molecote dos seus 14 anos, que é o méis terrível de todos, não só ladrão, como já autor de um crime de ferimentos graves, praticado na tarde de ontem. Infelizmente a identidade deste chefe é desconhecida.
O que se faz necessário é uma grande providência da polícia e do juizado de menores no sentido da extinção desse bando e para que recolham esses precoces criminosas, que já não deixam a cidade dormir em paz o seu sono tão merecido, aos institutos de reforma de crianças ou às prisões. Passemos agora a relatar o assalto de ontem, do qual foi vítima um honrado comerciante da nossa praça, que teve sua residência furtada em mais de um conto de réis e um seu empregado ferido pelo desalmado chefe dessa malta de jovens bandidos.
Era uma montanha como as outras
Tinha formas arredondadas, como todas, as montanhas já velhas, muito batidas pelos ventos. Tinha vales pouco profundos, por onde corria um regato que nascia no cume mais alto e descia em múltiplas curvas até á planície. Aí recebia água de outros riachos, nascidos noutras montanhas, e virava rio grande. Mas isso já era longe da nossa montanha, não entra na estória. Aqui era mesmo só um regato de água límpida, saltitante entre os rochedos, lambendo as raízes das árvores que cresciam nas árvores. Toda a montanha estava coberta por vegetação: árvores grandes como a mafumeira, a mulemba ou a amoeira de tronco banco, e também as de frutas silvestres. No chão se misturavam fetos de diferentes formas e tamanhos, begónias e rosas-de-porcelana. Só num ou noutro sítio tinha capim, capim tenrinho e que não crescia muito, por causa da sombra das grandes árvores, gigantes teimosos escondendo o sol.
O clima não era muito quente, por causa da altitude. E chovia bastante, daquelas chuvadas rápidas que sem avisar nos caem em cima, embora nunca com grande violência.
A montanha tinha dois cumes principais: o cume Lupi, o mais alto, onde nascia o rio de mesmo nome, e o cume do Sol, no extremo oposto. No meio dos dois cumes havia um morrozito com pedras, sem plantas nem árvores, apenas capim baixo. Era o sítio mais calmo e perfumado da montanha e dali se podia ver melhor o luar de Lua cheia; por isso era o Morro da Poesia.
Era uma montanha como todas as outras. Mas seria mesmo?
Pepetela, in A Montanha da Água Lilás